Ecce Homo, de Jan Mostaert |
A semana santa deste
ano acontece em meio a um momento profundamente crítico do nosso país. E, como
cristãos e cristãs, não podemos fingir que nada está acontecendo enquanto
celebramos nossa fé. Não dá para celebrar os grandes mistérios da fé cristã de
modo alienado, como se estivéssemos em outro país ou em um momento de calmaria
e tranquilidade. Isso não significa transformar o espaço das pregações litúrgicas
em comícios políticos ou os púlpitos em palanques. Mas não podemos ignorar a complexidade
do momento presente e nos posicionarmos ética e evangelicamente. Com certeza,
muitos de nós, nesta semana, vamos acompanhar não só as celebrações litúrgicas,
como também os desdobramentos da crise política que estamos imersos.
O objetivo deste
texto é ser uma ajuda, a fim de que, como a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil sugere em sua nota sobre o momento atual, publicada no dia 10 de março
de 2016, façamos um bom discernimento, com seriedade e responsabilidade. Não se
trata de uma questão meramente partidária de ser a favor ou contra alguém ou um
partido. Não é isso. O que está em jogo é muito mais profundo e sério. Não
escrevo este texto com o objetivo de inflamar os ânimos de ninguém – apesar de
saber que cada um reage ao texto de uma forma, inclusive com raiva e ódio.
Na chamada
“oração do dia” proposta para a liturgia do Domingo de Ramos e da Paixão
através do qual damos início às celebrações da Semana Santa, pedimos a Deus
Pai: “Deus eterno e todo-poderoso, para dar aos homes um exemplo de humildade,
quisestes que o nosso Salvador se fizesse homem e morresse na cruz. Concedei-nos
aprender o ensinamento da sua paixão e ressuscitar com ele em sua glória.” Pois
bem, Semana Santa é também tempo de aprendizagem.
O evangelho
proposto para este domingo é sempre o da Paixão do Senhor, cada ano lido a
partir de um dos evangelistas. Este ano, lemos a paixão a partir da ótica de
Lucas. O trecho vai do capítulo 22, versículo 14 até o capítulo 23, versículo
56. É a partir desse evangelho que desejo apresentar minha reflexão. E o que
podemos aprender dessa narrativa? Gostaria de propor uma perspectiva de leitura
a partir da multidão. Daí o título do texto: Paixão de Jesus Cristo segundo a
multidão.
A primeira vez
que Lucas cita a multidão no texto é no versículo 47 do capítulo 22: “Jesus
ainda falava, quando chegou uma multidão. Na frente, vinha um dos Doze, chamado
Judas, que se aproximou de Jesus para beijá-lo.” O que é interessante observar
é que alguém vai a frente da multidão. Ela não se movimenta sozinha. Judas,
nesse sentido, simboliza todos os que agitam, inflamam a multidão. A multidão
segue alguém. Não tem vontade própria. Aqui multidão se equivale a massa. Basta
que haja alguém para acirrar os ânimos e pronto. A multidão o acompanha para
onde quer que seja. É verdade que por trás de Judas há outros que não aparecem.
Aliás, aparecem como sendo os defensores da moral e dos bons costumes e, por
isso mesmo, não podem “sujar” o nome e a imagem. Assim, compram pessoas como
Judas, para ir a frente, incitando a multidão e indicando o que precisa ser
feito.
Tal cena me faz
recordar um estudo de um filósofo chamado Theodor Adorno. Por volta de 1950,
ele publicou uma pesquisa feita a respeito do que chamou de “Personalidade
Autoritária”. Seu objetivo era descobrir traços fascistas latentes em cidadãos
comuns e analisar panfletos e elocuções radiofônicas de agitadores fascistas,
militantes e líderes de organizações fascistas. A pesquisa é bastante
interessante e ajuda a compreender ainda mais esse fenômeno de que tratamos. Segundo
Adorno, as pessoas aderem ao líder não por falta de politização ou consciência,
mas por que sentem-se atraídas, às vezes inconscientemente, pelo discurso
fascista sobre sua estrutura psicológica
ou o caráter determinado societariamente pela cultura. Não é algo
lógico, mas psíquico. A diferença entre os líderes fascistas e seus liderados é
que os primeiros possuem a capacidade de colocar o seu inconsciente para fora,
sem censura, acionando e mobilizando as forças do inconsciente dos liderados. A
eficácia ou poder de mobilização do discurso fascista residia, segundo o
referido filósofo, na sua inverdade manifesta.
O
segundo momento em que Lucas cita a multidão é a partir do versículo 1 do
capítulo 23: “Em seguida, toda a multidão se levantou e levou Jesus a Pilatos.
Começaram então a acusá-lo, dizendo: ‘Achamos este homem fazendo subversão
entre o nosso povo, proibindo pagar impostos a César e afirmando ser ele mesmo
Cristo, o Rei’. Tal cena acontece após Jesus ser interrogado pelos anciãos e
sumos sacerdotes. O falso julgamento religioso – pois eles já tinham tomado a
decisão de matar Jesus – já estava concluído. Agora só faltava o julgamento
político e a sentença de morte. Tudo muito bem arquitetado. A partir daqui, é a
multidão que assume o papel protagonista. Não se fala mais em Judas, nem tampouco
nos anciãos e mestres da Lei. Apenas aparece uma multidão enfurecida e desejosa
de matar Jesus. No diálogo com Pilatos, os ânimos vão se acirrando cada vez
mais até o ponto de desejarem a soltura de Barrabás, condenado por homicídio, e
a prisão e morte de Jesus. Em meio à fúria e ao ódio, o discernimento e a
sensatez deixam de existir. Não há espaço para diálogo. Só desejam a morte de
Jesus. Perdem todos os parâmetros de justiça, respeito, prudência. Os apelos
são irracionais e irascíveis. Diante disso, afirma o texto que Pilatos decidiu
que fosse feito o que eles pediam. Soltou o homem que eles queriam, ou seja,
Barrabás, e entregou Jesus à vontade deles. Quando as autoridades, pensam e
agem apenas para agradar a vontade de uma multidão enfurecida, sem razão e
totalmente passional, o resultado é a morte. E é isso que acontece. Jesus é
crucificado em meio a malfeitores.
Após a morte de
Jesus, um oficial romano, que testemunhou tudo o que havia acontecido pronuncia
a sentença verdadeira: “De fato! Este homem era justo!” (Lc 23, 47). E após
essa afirmação, mais uma vez Lucas cita as multidões: “E as multidões, que
tinham acorrido para assistir, viram o que havia acontecido, e voltaram para
casa, batendo no peito”. (Lc 23, 48). A afirmação do soldado romano colocou fim
à onda histérica em que as multidões estavam imersas. Para os anciãos e mestres
da lei, o alívio. Podiam continuar a explorar o povo sem perder seu “status quo”.
E aproveitar para ocupar o lugar deixado por Jesus. Para as multidões, o peso
de ter matado um inocente, sem defesa. O bater no peito indica a dor na alma, o
arrependimento pela injustiça da morte de um justo. Mas agora é tarde. Só resta baixar o seu corpo da cruz e colocá-lo
em um túmulo. A partir dessa narrativa da paixão, podemos destacar alguns
aprendizados.
Primeiro: A
multidão é manipulável. Não enxerga com criticidade. Vai na onda, convicta que
faz a coisa certa. Na verdade, é usada por gente oportunista que não está nada
preocupada com o destino da nação. No nosso caso, a ideia do combate à corrupção
é apenas uma “ideia fachada”. Se realmente houvesse preocupação com a
corrupção, que é endêmica e sistêmica, a pauta seria outra. Por exemplo, a reforma
política e o fim do financiamento privado e empresarial das campanhas
eleitorais. Ou a regulamentação e democratização dos meios de comunicação
social, que funcionam como grandes agitadores da multidão. Mas sobre isso não
se fala, pois o que se quer é apenas ocupar o lugar de quem está governando e
pronto. Na verdade, não se quer acabar com a corrupção. E tampouco cuidar dos
pequenos e pobres. Essas últimas palavras parecem não existir no dicionário.
Segundo: Em um
regime democrático, as instituições não podem agir com o mesmo ímpeto que a
multidão. Que os cidadãos expressem descontentamento a respeito desse ou
daquele projeto político é compreensível. Faz parte do jogo democrático. E que
de tempos em tempos, conforme as regras, queiram mudá-lo também. Contudo,
quando as instituições, ao invés de assumirem a garantia das regras do jogo
democrático, agem conforme a vontade passional da multidão, elas deixam de
cumprir seu papel fundamental. Ao invés de promoverem o Estado Democrático de
Direito passam a promover, ainda que invisivelmente, o Estado de exceção. E o
pior: as penalizações valem para os grupos inimigos e os benefícios para os grupos
amigos. Dois pesos e duas medidas. Uma justiça conivente e envaidecida com os
interesses das elites e que passa a impressão de cumprir a lei a todo custo.
Terceiro: É
preciso estarmos bem atentos às decisões que vamos tomar. Nossa atitude pode colocar
em risco toda a história democrática do Brasil. Engana-se quem pensa que estou defendo
um partido. Não estou. A vítima
principal é a democracia brasileira. É ela que precisamos defender e salvar,
para que não tenhamos que bater no peito, chorando e pedindo perdão pelo que
fizemos ou deixamos de fazer. Em 1964, a marcha da família, com Deus pela
liberdade reuniu multidões. Foram manifestações ocorridas entre 19 de março e 6
de junho daquele ano. Parcelas do episcopado e clero católico também fizeram
parte. Sabemos bem onde essas marchas desaguaram. E depois só restou um
vergonhoso pedido de desculpas.
Como afirmei no
início desse texto, apenas quero ajudar a unir fé e vida, Palavra de Deus e
realidade histórica. E motivar a cada um e cada uma a aprender com a paixão de
Jesus e com a história do nosso país as lições que podem impedir o retrocesso das
conquistas democráticas. Seja essa semana santa uma rica oportunidade de aprendizagem
para todos nós.
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